“Quero retirar a queixa”. “Não preciso mais das medidas. Como faço pra encerrar”? Afirmações e questionamentos como esses são parte do dia-a-dia de quem trabalha com violência doméstica contra a mulher. Escutamo-os às centenas. Talvez milhares de vezes. Frequentemente proferidas pela mesma mulher. Relacionadas ao mesmo agressor. “Ele mudou”, ou “prometeu que mudará” seguem as expressões. E a todos já incomodou. Há alguns anos, perdíamos a paciência. Todos. Mea culpa. Juízes, promotores, policiais, defensores públicos, advogados, servidores. Até que passamos a entender o que subjaz às – infindáveis – voltas e retornos: o terrível ciclo da violência. Uma rede que envolve vítimas e agressores. Difícil de romper. De quebra dolorosamente árdua. Mas possível. Rompimento que se inicia conhecendo e nominando esse fenômeno.
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O ciclo de violência é um padrão, muito comum, desenvolvido em relações adoecidas, decomposto, invariavelmente, em três fases.
A (1) fase de aumento da tensão, na qual, dominado pelos dramas diários do quotidiano, o homem, tenso, inicia violências psicológicas. Silêncio. Indiferença. Desvalor. Humilhações. Diminuição da parceira. Controle e dominação. Ameaças a pets e filhos. Ela, por sua vez, tenta acalmá-lo. Para não o irritar, diminui contatos com sua família. Rareia convivência com amigos. Cede aos desejos dele. Desiste de seus projetos pessoais e seus sonhos de vida. É dominada. Dificilmente percebe-se vítima de violência. Silencia.
Essa etapa pode durar dias. Meses. Anos. Até sua evolução.
A escalada constitui a (2) fase dos atos de violência. Aqui, há a eclosão da violência. Psicológica, já iniciada na fase anterior, em maior grau. Moral. Patrimonial. E a física. Momento em que muitas se dão conta do labirinto em que se encontram. E os sentimentos se confundem. Dor. Medo. Solidão. Vergonha. Com duração de semanas, meses ou anos. Até o pedido de ajuda. E a (momentânea) separação.
É quando o homem dá início aos atos que figuram a (3) fase da lua-de-mel. Mostra-se – aparentemente – arrependido. Retorna pleno de promessas. Mudará. Os fatos nunca mais ocorrerão. A mulher escuta. Confia. Cede. Pressionada por diversos fatores. Família. Filhos. Conhecidas. Dificuldades financeiras. Dependência emocional. Medo de reviver o trauma. Até que a vítima é seduzida. Retomam o relacionamento. E, por um tempo, as promessas são atendidas. As tensões da vida, entretanto, retornam. Com elas, o reingresso na fase 1. E o ciclo completa-se. De modo aparentemente interminável. Ciclo que vem sendo também nominado espiral da violência, já que as violências voltam ainda mais intensas.
Relacionamentos marcados pela violência apresentam tendência ao perdão e a reconciliações cíclicas. Esse movimento circular, entretanto, pode ser rompido. E é quebrado, diariamente, por incontáveis mulheres. Dificilmente sozinha. Quase sempre com apoio. O fundamental suporte da família. A indispensável parceria de amigos. A cada vez mais presente comunidade, metendo a colher. ONGs, coletivos e redes. E o sistema oficial de proteção: Centro de Referência da Mulher (CRM), Delegacia da Mulher (DEAM), Patrulha Maria da Penha, Defensoria Pública, Advocacia, Ministério Público, Poder Judiciário.
Sair do ciclo de violência é custoso. Dolorido. Espinhoso. Esforço que desacomoda profundamente. Mas traz a paz capturada pelo agressor há tempo longo demais. O primeiro passo é reconhecê-lo. Reconhecer-se vítima. Pedir e aceitar ajuda. Algo do que ninguém deveria ter vergonha. E convencer-se que mulher alguma salvará os homens. Somente eles são responsáveis por seu tratamento – e cura. Não há amor que cure o mal do outro. Unicamente os agressores conseguirão mudar. Quase sempre com tratamento psi. Ajuda médica. Fé. Sempre reconhecendo suas falhas, erros e necessidade de mudança e evolução.
Até lá, às mulheres toca construírem saídas de relações adoecidas. Busquem auxílio psicológico. Apoiem-se em amigas. Apelem ao Estado.
A felicidade não está em seu agressor. A felicidade está em si mesma. E ela é possível. Assim como possível é romper o perverso ciclo da violência. E reescrever sua história.